16.5.06

Sorriso amarelo

O meu amigo levou-me ao jardim que ficava a cem passos da sua casa, onde um milhar de jovens vestidos de negro se concentravam para um concerto da pesada. Ao nosso lado direito, nuns painéis colocados expressamente para o efeito, grafitos eram desenhados por mãos hábeis e experientes. Ao nosso lado esquerdo, as drogas iam passando de mão em mão num círculo de amigos, já meio inclinados para o lado e com ar alucinado.

- Pois, disse eu encolhendo os ombros. De facto é chato este barulho todo ao pé de casa. Mas também é só um dia.
- Na verdade - respondeu-me - isto não é nada. Há dois anos convidámos uns amigos para ir a nossa casa, e era o fim de semana rosa... Imagina-os a chegar e isto tudo cheio de pares de pessoas que não batiam certo.

Esbocei um sorriso amarelo, entrecortado com divertimento. O meu amigo continuou.

- E depois à noite fui jantar sozinho com o A.. Não imaginas, os bares da cidade estavam cheios dessa gente.

Olhei para o chão e dei um pontapé ao ar, rasante ao solo, que fez levantar as folhas caídas. Ele continuou, entusiasmado.

- Imagina o que é só andarem desses por aí, e eu com o A., num restaurante à luz das velas. Eu só pensava: tirem-me deste filme!

Acompanhou a última frase com um movimento de braços digno do melhor italiano. Não contente, deu um saltito e repetiu, em tom de súplica triunfante:

- Tirem-me deste filme!

Nunca o meu sorriso foi tão amarelo. Discretamente, mudei o tema da conversa. Não valia a pena, nem dava, para ir por aí...

17 comentários:

/me disse...

Eheh, nah, ele é mesmo hetero. E bom rapaz. :)

Anónimo disse...

"Que horror: homens de mãos dadas! E possivelmente a beijarem-se em público! E comendo à luz das velas, obedecendo ao padrão ( americano ) de jantar romântico! E podendo eu ser confundido com um desses anormais!

Que eles fodam em privado, como animais lúbricos que são, longe das vistas dos homens, nos seus fojos e tocas, é ainda indecente, mas, enfim, não devem ser perseguidos por isso - que sou um tipo do meu tempo.

A visibilidade, e, sobretudo, a pretensão ao romance, ao amor, à família - é que não pode ser! Não conspurquemos estas santas palavras!!"

No fundo, é a posição oficial da Igreja.

Abreijos,
ZR.

Mikael disse...

Para além da primeira pergunta óbvia que é porque foste até esse jardim segue-se ainda outra mais premente. Porquê esconderes-te atrás de um sorriso amarelo?

Abraço

/me disse...

Mikael, nem sempre oferecer a nossa opinião é o melhor. Neste caso, não faria diferença. O meu amigo é homofóbico, e não vai deixar de ser. Não deixa de ser meu amigo por isso, nem eu amigo dele. Mas não vou prejudicar-me nem prejudicar a minha amizade com ele por isso. Esta poderá não evoluir até ao seu potencial máximo, mas se ele não está preparado para aceitar essa parte de mim, tudo bem. Ainda resta muito em mim, mesmo muito, que posso dar numa amizade. Só essa parte é que não é possível.

De resto, poderia argumentar-se que eu tinha o dever moral de o contrariar, sem me expôr. Mas também tenho o dever de me salvaguardar a mim e aos meus.

Há que saber quando lutar, e quando recuar. :)

Mikael disse...

Concordo que há lutas que não vale a pena travar. Não por o objectivo ser apenas a vitória, mas porque se não se tiver algo a ganhar (mesmo na derrota) então não vale mesmo a pena.
Também concordo que a amizade não deverá impor a partilha de tudo, cada um sabe em que moldes quer tecer essa amizade. Pessoalmente pouco me importa a orientação sexual dos meus amigos, não vejo como isso poderá afectar o afecto que tenho por eles, mas sei que o que resulta para mim pode não resultar para os outros.
Por fim, quanto aos "dever moral" nem vou por aí.... Simplesmente digo que não seria necessário esboçar um sorriso amarelo. Não precisas ser de uma etnia diferente para seres contra o Racismo.

Abraço!

Nuntius disse...

lol...homofobia a mais, sou vestigios de recalcamento....como diria um amigo meu Freud explica isso...;)

Anónimo disse...

A atitude de uma pessoa GLTB ante uma manifestação de homo/bi/transfobia só NÃO pode ser uma: entrar no jogo, apoiar.

De resto, desde a neutralidade absoluta até à oposição total, todas são admissíveis e ficam com a sua consciência. Qualquer que seja a sua escolha, deve ser respeitada por todos.

Abreijos,
ZR.

/me disse...

De acordo, Zé. :)

sabine disse...

Enviar a msg ao destinatario:
http://insustentaveleveza.blogspot.com/2006/05/da-solidariedade.html

Anónimo disse...

Esse sorriso amarelo é-me familiar.
Por vezes entrei em acesas discussões, defendendo o meu ponto de vista, mas nunca deu resultado. Por isso passei a adoptá-lo, um simples sorriso amarelo...
É verdade que numa amizade não é preciso partilhar tudo, mas quando numa amizade é preciso montar um sorriso amarelo... é complicado...
Tb tenho amigos assim.

Abreijo! ;)

teresa.com disse...

pois, perdeu uma oportunidade para estar calado! eu acho que entrava no tabefe!
ainda bem que estás de volta :)

Anónimo disse...

Permito-me uma informação que não fica mal junto a este post.

( Não pedi licença ao /me, mas - se o conheço - sei que até ficará satisfeito. )

Mesmo entre os "anormais de 1ª ordem", isto é os cisexuais homo e bi, os "anormais de ordem superior", isto é os transexuais, são olhados de viés.

( É como a história do Alphonse Daudet sobre a Argélia colonial: o francês descarrega no árabe, que descarrega no judeu, que descarrega no preto, que descarrega no burro; de modo que todo o ódio da Argélia assenta nas patas fininhas do burro. Ai o homem ... )

Por mim falo: arrumada a questão na cabecinha há muito tempo, o coração continuava teimoso. Foi só há uns cinco anitos que o preconceito ruiu, catrapás, e foi um alívio por me ter desembaraçado desse empecilho.

Por isto sou muito sensível ao tema e estou entusiasmado com um blog novíssimo sobre ele da autoria de uma Trans MTF ( = Male to Female ) do Porto. É um blog muito bom, com muita informação; e o primeiro passo para varrer o preconceito é varrer a ignorância.

Deixo o endereço:

http://fishspeaker.blogspot.com/

Ah, é verdade: Há analogias estruturais entre a mente da autora e as mentes de pessoas dos blogs do /me ( minha incluída ); talvez causadas por uma certa disciplina mental a que a actividade profissional obriga ...

Abraços a todos,
ZR.

Anónimo disse...

\me,

de volta aqui ao sofá...

Uma das minhas maiores amigas, senão a maior, passava oitenta por cento do seu tempo a explicar-me o nojo que lhe metia dois homens aos beijos ou pior ainda, duas mulheres aos beijos... Blarghhh! Que nojo! Um dia, uns valentes anos depois de nos conhecermos e de não sobrevivermos uma sem a outra, resolvi dizer-lhe calmamente que eu fazia parte desse grupo de aberrações da natureza. Foi a única vez que disse isto a alguém, assim de uma forma directa, olhos nos olhos com as palavrinhas todas. Ficou a olhar para mim com um ar meigo (é cem por cento hetero) fez-me uma festa, deu-me um abraço e convidou-me para jantar. Hoje quando pego na filha dela, de poucos meses de idade sei que o preconceito já não vai morar ali.

O meu irmão (espero que seja hetero pois é a única hipótese que eu tenho para a minha mãe não me chatear com a ausência de netos, egoismo puro, coitado...) durante muitos anos ía jantar sozinho com um amigo no dia dos namorados. Fazia-me rir imenso no dia seguinte.

Acho que quando as pessoas convivem de forma saudável com amigos homossexuais isso os leva a encarar as coisas de uma forma extremamente saudável e bastante prática. Sobretudo, de facto, quando os seus fantasmas pessoais estão todos bem arranjadinhos e sem rabos de fora.

Acho que já te tinha contado esta história.

beijinhos,
AR

Vítor Mácula disse...

Dark kisses, pink kisses, blue kisses... and never may grow in your face a fucked yellow smile.

(Os achaques de coloquialidade às vezes dão-me para isto...:)

dcg disse...

Este episódio que contaste significa para mim várias coisas! Significa identificação com os meus amigos; significa o "pão nosso de cada dia"; significa um cansaço precoce de tentar contrariar ou mudar ideias homofóbicas, de tentar argumentar aquilo que não estão dispostos sequer a ouvir... Significa também rever-me na parte em que dizes continuar a considerá-lo como teu amigo. De facto descobri em mim uma capacidade, que não conhecia nem acreditava ter, de continuar a amar os meus amigos que são assim, mesmo ficando tristíssimo e ferido com o que ouço deles frequentemente. Mas, por outro lado, ser amigo é também isso: é gostar, apoiar, mesmo com todos os defeitos.
Abraço grande, amigo.

/me disse...

Eu estava à espera que este post levantasse este tipo de questões.

De uma forma concisa: perante um comentário deste tipo do meu amigo, eu tinha o dever de protestar?

Nisto, concordo com o ZR: "A atitude de uma pessoa GLTB ante uma manifestação de homo/bi/transfobia só NÃO pode ser uma: entrar no jogo, apoiar."

Um sorriso amarelo entra nesta categoria. De resto, há muitos factores em jogo. O facto de se tratar de um amigo da família, de não sermos assim tão próximos, de não ter nada de saber sobre o que me dita o coração, etc. Só tinha a perder e não ia fazer diferença nenhuma. Há que saber que batalhas travar. Há algumas que são obrigatórias. Este não era o caso.

(um aparte: o gato da vizinha está fixamente a olhar para mim, do outro lado da rua... ficou espantado!)

Anónimo disse...

Há duas ordens de razões para deixarmos à consciência de cada qual o que fazer:

i) A infinita variação de circunstâncias concretas, que ninguém pode prever, mesmo o próprio, e que podem levar até à improvisação, ao afastamento de uma regra que se fixou a si mesmo.

ii) A história pessoal de coming out, que tem os seus tempos, em geral diferentes de pessoa para pessoa: não falo só do próprio , falo também da pessoa para quem se faz o coming out.

E - PORRA! - há uma razão básica: a liberdade ( ou dever? ) de cada um fazer o que julga justo segundo a sua consciência!

Então eu ando sempre a barafustar com a Igreja por ela me arranjar um código minucioso de proibições, para todas as situações possíveis e imaginárias, em vez de me deixar, como adulto que sou, guiar-me pela minha consciência - e ia agora eu, Zé Ribeiro, armar em moralista!

Estabelecida a fronteira inviolável e de que ninguém dicorda, que cada um se guie a si próprio - e que nos ajudemos uns aos outros.

Zé Ribeiro.