Hoje li, num livro de Steven Saylor:
Porque será que, quando se parte um vaso requintadamente trabalhado mas de pouca utilidade prática, sentimos a perda mais agudamente do que quando se parte um vaso feio do qual nos servimos todos os dias? Os deuses fizeram os homens amar a beleza acima de tudo, talvez por eles próprios serem belos, e desejarem que os amemos, mesmo quando nos fazem sofrer.
Sendo que a inexistência de deuses é prova que me chegue da sua inocência, resta muito a dizer sobre a beleza - material, física, intelectual, de carácter ou outra - que nos apaixona. Gostaria de discutir qual delas é mais importante, qual é moralmente mais elevada. De defender que qualidades intelectuais não são superiores à beleza física, mas antes da mesma natureza acidental. Fazer a defesa da pureza de carácter e reflectir sobre a influência que a genética e a educação têm nesta - ver texto do on.
Mas este é o primeiro post de um novo blog. Exige-se que explique as minhas motivações: apetece-me poder escrever, exprimir-me, partilhar. O que espero do Relapsias é que seja um instrumento fiel, à mercê dos meus caprichos. E, em simultâneo, um sofá confortável de almofadas desalinhadas, onde me sente à vontade com os meus amigos, suficientemente flexível para servir de divã de psiquiatra ou de outra coisa qualquer.
Há anos, quando dei por mim apaixonado pelo meu melhor amigo - em vista das pragas que na altura lhe roguei, Éros pode dar-se por feliz de não existir realmente -, escrevi-lhe entre muitos um texto sem título, para uma carta. Neste, num jeito corajosamente patético, abria mais que alguma vez até então a minha alma sobre os negros sentimentos que me apertavam o coração. Era um escrito diferente dos meus até então, um passo em frente na minha capacidade de expressão. Atormentou-me porém a falta de título, que me pareceu uma falha terrível. Peguei então no dicionário e fui abrindo as folhas ao acaso, procurando entre as palavras que desconhecia, até encontrar relapsias.
Relapsias. Erros repetidos. Bateu certo, como se já conhecesse a palavra, apesar de nunca a ter lido antes. Ficou como título da carta, e serve hoje para nome do blog. É, juntamente com linger, um dos termos que tenho sempre presentes, como aviso protector contra a tendência para fazer o que estes significam.
Esta minha casa é vossa.
25 comentários:
ehehe
Vejam so quem voltou :D ^^
Welcome Back, dude :D
Hugz [[]]
A beeza física e a capacidade intelectual são acidentes que nos ocorreram (ou não)?
Certamente que sim.
Mas a pureza de caracter também!
Para não falar na conta bancária dos nossos pais no dia em que nascemos.
Qual é a diferença?
Deixemos pois cair todas as nossas vaidades idiotas. Se formos capazes.
on, eu acho que a beleza física e a capacidade intelectual são de facto acidentes que nos ocorreram. Mas claro, há mérito na forma como optimizamos essa beleza (deixo de fora as "plásticas"; basta pensar em cuidados básicos como arranjar um bom corte de cabelo e andar bem vestido) e também na forma como cultivamos essa mesma capacidade intelectual (lendo, estudando...).
Pode haver algum mérito, tanto na nossa beleza, como na nossa inteligência. Curiosamente, e era a isto que me queria referir, há quem considere que a inteligência é uma qualidade "interior" ou "superior" da pessoa, em contraposição à beleza, que é apenas "superficial". Para mim, são da mesma natureza.
Quanto à pureza de caracter (não confundir com personalidade, que essa, apesar de moldável, é também acidental), é óbvio para mim que também esta depende da nossa educação, e suponho que dos nossos genes. Mas depende também de nós mesmos. Eu não acredito que estejamos pré-destinados, há sempre o livre arbítrio. Podemos efectivamente fazer escolhas. Não existe uma fórmula matemática para calcular o (de?)mérito que uma pessoa tem na formação do seu carácter mas se existisse creio que mediria o quanto uma pessoa evoluíu face ao que seria expectável.
Quanto a deixarmos cair as nossas vaidades, não podia estar mais de acordo.
É bom ler-te de novo.
1 beijo bem grande
Caro /me, logo que soube vim a correr para aqui. E não vou fazer cerimónia para me sentar neste sofá.
Salve!
Que bom, /Me. De regresso. :)
Não acho que sejam acidentes. Tudo o que está relacionado connosco, depende, apenas e só, de nós próprios. Não é à toa que, face a dois fetos, não é fácil distinguir um de outro, num olhar rápido e pouco atento.
Somos nós que nos fazemos. É o que eu acho.
E sim, todas as belezas são importantes. Mas a nossa noção de beleza, a qualquer nível, está intimamente relacionada com os afectos. Por isso não é igual para todos.
O vaso que usamos todos os dias só é feio, porque, provavelmente, não nos foi oferecido por alguém especial. E se o tivesse sido, também provavelmente, não o usávamos todos os dias, para reduzir o risco de se partir, e passava a ocupar o mesmo lugar do dito "vaso requintadamente trabalhado mas de pouca utilidade prática".
Os afectos movem-nos. Constroem-nos, moldam-nos, e podem (como no caso das pessoas com pouca pureza de carácter) destruir-nos. Está nas nossas mãos. Haja resiliência.
Olá. Dou-te um beijinho. Entro. Um gin tónico era bom. Mmmmm! Está bom, não precisas pôr mais limão. O sofá é grande, gosto das almofadas. Abres a janela, é pena o sol não ser de outra cor neste país a norte. Mas serve para a nossa conversa. Qualquer ponta de sol nos chega. Virei sempre. Como sempre. Obrigada pelo gin.
Que bom. Beijinhos
AR
Boa sorte para o blog.
Ah ... instalo-me no sofá, tacteio as almofadas ( parecem fofinhas ... ), cruzo as pernas, pego no chá que me ofereces ( mnham ... Rouge Bourbon da Mariage Frères ... o meu preferido ... como soubeste? ), agradeço-te.
Sem vergonha, olho à volta, apreciando o ambiente discreto, mesmo sóbrio: ná, não é fábula - queerness e decoração de interiores combinam muito bem ...
Fixo o olhar em ti: apesar do ar sonso, pacífico como um gato ronronante, percebo que o sofá e as almofadas e o chá e o ambiente - é uma ratoeira, em que vou cair gostosamente, palrando e palrando e palrando ...
Bom, vamos lá:
( Há uma ode de Yeats, "A Uma Urna Grega", que deve estar na origem do comentário do Saylor. Mas não a tenho à mão. )
Belezas física, intelectual e de carácter. Construimo-las? Ou recebemo-las? Importâncias relativas? E quando se quebra o vaso?
1) Beleza física.
Na maior parte, recebemo-la ( ou não ). Mas construimo-la em alguma medida. Não, não estou a falar de roupas, cremes, musculações, ... É outra coisa.
Creio já ter dito que, para mim, a beleza de um homem ou de uma mulher reside em primeiro lugar na face e nas mãos; não na perfeição dos traços, não na forma das mãos; mas na expressão da face e no movimento das mãos. Até certo ponto, isto é uma parte visível de algo que se constrói.
Depois vêm aspectos mais morfológicos, o peito na mulher, o rabo no homem ( questões de forma, não de tamanho ); a forma geral do corpo, esguio/entroncado; e por aí fora. Aqui, a parte congénita é determinante.
É importante? Depende. Depende do fim em vista. Digamos que a importância é mínima se se procura uma "rapidinha" ( em que nem nos detemos a olhar ); máxima se se trata de uma relação mais demorada, mas estrictamente carnal ( as chamadas "quecas oftálmicas" ); e que volta a diminuir quando se passa a uma relação carnal/espiritual.
Afirmam os especialistas que pode tornar-se um infinitésimo de ordem superior a um com o quociente carnal/espiritual a tender para zero. Talvez, não sei. É possível que se passe à construção de uma beleza hipersubjectiva, "quem ama o feio bonito lhe parece".
O tempo faz estragos neste tipo de beleza. Após um máximo, nos trinta e tal para a mulher, nos vinte e tal para o homem, começa o declínio, que se acentua a partir dos cinquenta. Isto em termos gerais, porque há muitas excepções.
Conheci mulheres que aos vinte estiveram no esplendor, com um torso ( nas zona das costelas falsas ) próprio de Deusa, e que aos trinta já tinham o ar de um fruto sorvado. Conheci homens que atingiram o auge da beleza física aos sessenta e picos. Trata-se de mulheres "estragadas" por maternidades repetidas e de homens de intensa actividade física e grande preocupação com a saúde e o corpo.
Forma inferior ou superior de beleza? Nem inferior, nem superior - é ela, com as suas características próprias: essencialmente recebida, essencialmente efémera.
( O relógio bateu a 1/2 noite, tenho que ir. Continuo amanhã. )
'braço amigo,
ZR.
hoje é tarde. tenho sono.
amanhã volto aki!
;)
me/
Mudas de casa mas continuas a ser o Me/ de antes. Espero sentir-me bem por aqui como me sentia em Minudências. E se logo no hall de entrada encontramos um sofá, então acho que é para nos demorarmos por aqui um pouco mais em longas tertúlias.
Vai! Agora começa a por os móveis, perdão!, os textos!
Abraço!
Ontem cabeceava de sono e "lapsei": "Queca oftálmica" é o que se passa quando olhamos alguém, bem nos olhos, e DIZEMOS um ao outro que sim, claro, mas, por razões de circunstância, não pode ser. Eu queria dizer "queca por razões oftálmicas".
A propósito da importância da beleza física, não devemos esquecer que os cegos fornicam e amam como as pesoas que vêem - e que não há razão para suspeitar que o processo seja diferente.
E tenho aula. Volto à noitinha. Não esqueças: três colheres de chá bem cheias para 1/2 l de água.
'braço,
Zé.
Senti a tua falta... Às vezes precisamos mesmo de mudar de casa para nos sentirmos (mais) em casa.
É bom ter-te de volta.
Um beijo.
Leio todos os livros do Gordiano. Transcendem largamente o genero policial historico.
É bom entrar nesta tua nova casa!
Que seja ainda melhor que a outra!
;)
Olá /me,
Tá bonita a festa de inauguraçäo, pá!!!
Relapsias? Se me näo falha a memória, "relapso" é o reincidente na heresia, com difícil escapatória à excomunhäo... :)
Bendita reincidência a tua! Bem-vindo.
Abraço
Então que regresses bem!
Gostei do hall de entrada. Vamos todos estar bem aqui.
Abraço
Zé
Um regresso em grande! Bem à tua medida! Atrevo-me a dizer, correndo o risco de me precipitar, que está ainda mais genial que o anterior blog.
Abraço bem grande, miúdo!
Pois, o destino dos relapsos era o fogo, terreal primeiro, infernal depois. Mas havia ainda uma forma superior, a contumácia, associada à obstinação escandalosa no erro. Réus contumazes de heresia, isso nem se fala - fogo com eles e a galope!
Enfim, tempos que passaram.
Zé.
Sinceramente esperava que demorásses muito tempo a retomar a escrita e a partilhá-la. És pessoa de questões interessantes e com ânsia de ver algumas respostas, mas não esperava que o intervalo durásse tão pouco tempo. Melhor assim!
Hoje não me apetece discutir o sexo dos anjos, apesar de gostar do tema. Dói-me a cabeça, desculpa lá.
Quanto ao nome, estás à vontade para dares mais daquilo a que me (arrisco um nós tendo em conta o volume de comentários)acostumaste.
Abraço
Oh Zé...
Belos tempos, belos tempos!... Já sei que se algum dia tiveres um blog lhe vais chamar "Contumaz"...
(estou, obviamente, a brincar!)
Abraço :)
Manuel:
Como sabes, eu fiz parte por muito anos duma Igreja laica, conhecida por PCP, em que os processos por heresia eram igualmente frequentes e expeditos. Só não se acabava na fogueira ... porque os tempos são outros.
Mas fiquei vacinado: noutra Igreja - laica ou religiosa - não me apanham tão cedo.
Não, não será "Contumácia"; talvez "Dozesforanada" - e não é piada aos Apóstolos.
Um abraço grande,
Zé.
Ainda bem que confessaste nunca ter lido a palavra e a definiste.....confesso que estava com alguns problemas de confessar a minha ignorância (redundâncias obligent!)
Abraço
Olá, si-próprio :)
A beleza salva-nos - é o esplendor da pessoa e da civilização.
Estou muito coloquial, hoje ;)
Fico contente por continuares a morar por aqui.
Um grande abraço.
PS: Não se pode avançar verdadeiramente, sem relapsias :)
Enviar um comentário