29.11.07

Resposta

Coloco aqui a resposta simpática que o Francisco José Viegas deu ao meu e-mail (com uma diferença: onde aparecia o meu nome, troquei por /me):

Caro /me,

desculpe só agora responder à sua amável carta (é hoje muito raro podermos discutir ideias e razões com delicadeza) que me enviou a propósito do artigo de segunda-feira passada. Não o fiz logo porque houve “coisas familiares” que se meteram pelo meio.

Caro /me, não sei a sua idade (e provavelmente isso não tem importância) mas, com 45 anos, encontrei uma parte do mundo já feita – direitos essenciais tinham já sido garantidos durante os anos sessenta e setenta e, embora não nutra grande simpatia (como deve ter notado) pela mentalidade “soixante-huitard”, reconheço a minha dívida e fico grato. Uma das áreas em que me tenho empenhado é na defesa das liberdades individuais, que penso estarem ameaçadas hoje em dia – pelo Estado, pelo sistema político, pelas grandes corporações, etc. Esse é o meu domínio em absoluto. Liberdade quer dizer, exactamente, liberdade. Assumir os meus direitos – à privacidade, à intimidade, à identidade. Tenho dado provas nesse aspecto e não preciso de invocar textos que escrevi.

Ao contrário de outras perspectivas (que admito estarem certas, mas que pressuponho que estão erradas), acho que a melhor forma de transformar a sociedade é (desculpe o lugar-comum) pela “via reformista”. A “sociedade” é um monstro ignóbil e geralmente demasiado vago, constituída por pessoas que nascem naturalmente más e que, com o tempo, a cultura, a aprendizagem, o contacto com a arte, a sensibilidade e até a experiência, aprendem a ser melhores. Os direitos dos gays, lésbicas e outras orientações sexuais não constituem para mim alíneas especiais desse combate pela liberdade e pela identidade – são parte essencial dele. Por isso acho ridículo não estar legalizado o casamento de homossexuais. Como são absurdas várias coisas nessa matéria.

Quando refiro o “politicamente correcto” quero significar aquilo que é apenas do domínio da linguagem – e não quero dar-lhe exemplos banais. “Orgulho gay” significa, exactamente, “orgulho em ser gay” e em admitir essa identidade. Nada contra. Absolutamente nada. Nem uma única objecção (para quem viveu no Brasil ou em Israel, o “gay pride” é uma manifestação absolutamente normal). Totalmente contra a discriminação. Acredite, no entanto (e digo-lho com a maior honestidade, absoluta honestidade), que a melhor forma de evitar transformar o “gay pride” em folclore é não fazer do tema um combate radical e “fracturante” mas, antes, um acontecimento natural, uma “parada” que faz parte do calendário e que não visa criar um reduto mas, antes, uma abertura de portas.

As sociedades mudam lentamente. O /me afirma, no seu mail, que a sociedade reprova os relacionamentos homossexuais. Não acho isso. Acho, até, que a sociedade – lá no fundo, se quiser – os admite. Com normalidade e (lá vai o meu temperamento conservador) discrição, da mesma forma como lida com outros “temas fracturantes”. São anos e anos e anos de “valores” cristalizados, que não mudam de um ano para o outro. Lembro-me de um dia em que fui a uma pequena aldeia da Beira Alta, onde vivia um determinado escritor holandês. Lá chegado, perguntei onde morava o sr. [...]. “Ah, o holandês? Mora ali ao fundo, mas olhe que o namorado dele esteve ainda agora aqui.” Isto passava-se na Beira, há uma boa dezena de anos.

Manifestar o “orgulho gay” significa aceitar que exista um “orgulho hetero”. Até por humor, que é a melhor forma de combater. O sentido de humor nunca se deve afastar destes debates. Com os meus amigos gays brasileiros eu costumava brincar há já muito tempo, quando eles me falavam do direito ao casamento civil gay. Nada a opor, eu dizia. Acho bem que casem, porque toda a gente tem direito a ser infeliz. Era brincadeira, humor. Eu sou assim. Não acho que invocar o “orgulho hetero” seja ofensivo ou homofóbico. Aqui entre nós, um presuntivo e hipotético “orgulho hetero” não se dirige contra o “orgulho gay” mas, sim, contra essa onda muito mais “metrossexual” que o common-sense confunde com gay, e que é apenas – aí sim – folclore e plumas. No Rio Grande do Sul conheci uma comunidade gay muito interessante, com quem me dou bastante, e que me contavam a história de um jovem gay que costumava frequentar determinadas tabernas da zona da Beira-Rio. Os frequentadores habituais (é preciso conhecer um pouco das idiossincrasias do Rio Grande do Sul e da cultura gaúcha) respeitavam muito o Edison (ele). E diziam, com aquele jeito gaúcho: “Mas, bah, é preciso ser muito macho pra vir aqui.” Eles compreenderam, com a proximidade, com a naturalidade, que não havia nada estranho naquele comportamento que, para eles, seria inusual. O outro passou a existir, passou a ser-lhes mais próximo.

No meu livro “Longe de Manaus”, há duas personagens lésbicas; uma delas imagina o que os outros pensariam dela. Que teria a pele coberta de penas, que o corpo seria estranho, etc etc. O que nos faz , a todos, estranhos, é não nos conhecermos verdadeiramente.

Compreendo, aceito e respeito os seus argumentos. Mas permita-me discordar ligeiramente deles – não do combate que eles supõem. Quando eu escrevi que “hetero que é hetero não fala do assunto” quis dizer, exactamente, que estavam a fazer uma figura ridícula. É a minha maneira de dizer. Politicamente, era mais “correcto” levantar a voz e condenar, com um discurso muito complexo e cheio de banalidades (desculpe, mas muitas vezes só encontro banalidades nesse genero de discurso). Mas acho que o humor é uma arma muito mais letal. O que a Tagus fez foi aproveitar a extrema popularidade do tema “orgulho gay” e dizer, no fundo, que o “orgulho hetero” se sentia ameaçado. Serviu-se do “orgulho gay”. Mais nada. Fez uma campanha idiota, que seria desvalorizada pelas pessoas e pelos próprios consumidores.

Por esse motivo eu acho que determinadas posições mais radicais são muito contraproducentes (como aliás admitiu o blog Renas e Veados). Melhor é rir e ironizar. Esse é um bom combate. O mundo já é triste demais, violento demais, desagradável demais. V. pode não concordar com as minhas razões, e eu posso não concordar com todas as suas – mas num ponto nos encontramos: na defesa da liberdade. Lamento se o ofendi com alguma coisa. Não queria nem quero. Receba um abraço amigo do

Francisco

4 comentários:

Anónimo disse...

Uma bela resposta ao belo mail que lhe envias-te. ~

Parabéns

Luis da Cunha disse...

Permite-me discordar. Ainda que o Sr. Francisco José Viegas tenha usado parêntesis em cada opinião forte que tinha, talvez para não ser mal interpretado, abusou de lugares-comuns e referências pessoais justificadoras não sei bem de quê. Sim, o Sr. Francisco fez questão de deixar claro que não é homofóbico, mas alguém o acusou de o ser? Porém, alguma fobia ou falta de esclarecimento terá em outras matérias como quando diz:

“Aqui entre nós, um presuntivo e hipotético “orgulho hetero” não se dirige contra o “orgulho gay” mas, sim, contra essa onda muito mais “metrossexual” que o common-sense confunde com gay, e que é apenas – aí sim – folclore e plumas.”

Não vamos sequer falar no facto do Sr. fazer uma extrapolação brutal do que ele entende da campanha, mas e se realmente virmos esta campanha como uma onda contra o homem “metrossexual”:

1º Porque não apelidá-la de “orgulho anti-metrossexual”?

2º Será que deixa de ser uma campanha preconceituosa?

Além disso, se o common-sense dos portugueses ainda confunde metrossexual com homossexual não será com a definição do Sr. Francisco que se esclarecerão. Eu considero-me um homem metrossexual e não me identifico com os termos “folclore” e “plumas”.

Lamento a extensão do comentário mas tenho acompanhado tão atentamente o teu blog que não resisti a intervir.

/me disse...

LC, pessoalmente não concordo com tudo o que o Francisco José Viegas diz. Mas continuo a achar que é uma excelente resposta. :)

De resto, eu decerto não lamento a extensão do teu comentário.

André disse...

O senhor Francisco José Viegas é um homem muito "prá frentex", até tem amigos gays, mas discretos. Até, vejam bem, concorda com os casamentos homosexuais. Que bom, que alegria. Comovi-me.